Por Yan Boechat — Para o Valor, de São Paulo
19/06/2020
Foi em uma tarde do verão de 2015 que o padre Ivaldino de Assis apanhou pela primeira vez. Dois tapas no rosto. No primeiro, a mão do policial militar acertou sua bochecha direita com força. Antes de receber o segundo, levou a mão à face, abaixou a cabeça e minimizou o impacto do golpe. Assis não se lembra de ter sentido dor. Só consegue lembrar da raiva.
Entre socos, empurrões e xingamentos, teve uma epifania. Chegou à conclusão de que jamais seria capaz de dar a outra face ao agressor, como ensina o Evangelho que estudou primeiro em Cabo Verde, depois em Portugal e por último na França, antes de ser designado por Roma para ocupar o posto de pároco em um bairro da zona leste de São Paulo. Enquanto era arrastado a paredes que delimitam a largura dos becos da favela, teve outra revelação. “Para continuar sendo o pároco daquela comunidade, eu ia ter que abdicar do discurso de paz e incentivar a luta”, diz o padre.
Não fazia dois anos que Assis, negro de 36 anos e pouco mais de 50kg, havia desembarcado em São Paulo para ser o responsável pelas seis igrejas e capelas que compõem a Paróquia de São José Obrador. Nascido em Santiago, a principal das dez ilhas do arquipélago de Cabo Verde, Assis nunca fez questão de preencher o estereótipo de um padre da Igreja Católica Apostólica Romana. Búzios e pedras coloridas ornam os “dreadlocks” de seu cabelo ao estilo rastafári e suas roupas sempre cheias de tons quentes pouco lembram a sisudez de um servidor do Vaticano.
Para os policiais que faziam batida de rotina na favela da Vila Prudente, Assis se encaixava com mais facilidade no modelo do que parte da Polícia Militar paulista considera como “marginal” do que o de um padre. Assis se lembra de ter ficado estático ao ver o grupo de policiais com arma em punho revistando um grupo de jovens em um dos becos, que, de tão estreitos, não comportam um carro. Mesmo tendo sido parado pela polícia em seu primeiro ano de Brasil muito mais vezes do que em dez anos vivendo na Europa, Assis ficou atônito, assustado. Não abaixou a cabeça. E então vieram os tapas. Depois, os empurrões. E logo os xingamentos: “vagabundo”, “maconheiro”, “ladrão”, “neguinho folgado”.
“Quando mostrei minha carteira de padre, não acreditaram”, relembra. “Perguntavam onde tinha conseguido aquilo, de quem tinha roubado.” Após ligações para a Arquidiocese de São Paulo, os policiais mudaram o tratamento, pediram desculpas. Um deles até pediu a benção ao padre. “Estava tão transtornado que os xinguei.”
Desde aquele dia, Assis abandonou discursos conciliatórios em relação à polícia que costumava fazer nas missas de domingo. Passou a pregar que os moradores da favela da Vila Prudente precisam lutar contra o que ele chama de “política genocida contra a população negra e periférica”. Intitula-se ativista-militante de batina.
“Não posso ser padre sem me envolver nessa questão. As coisas vêm piorando, nestes sete anos de Brasil eu jamais vi a polícia chegar até mim ou a qualquer pessoa da ‘quebrada’ com um mínimo de respeito. É sempre violência, agressão, morte”, diz ele, misturando o sotaque luso-africano com gírias da periferia paulistana.
Assis é pároco em um bairro emblemático de São Paulo. Ali a polícia tem sido especialmente violenta. Em 2018 a Vila Prudente registrou uma marca incomum até para os padrões paulistanos e brasileiros. Ao longo daquele ano, 100% dos homicídios cometidos no bairro foram realizados por agentes das forças públicas de segurança. Segundo os dados sobre letalidade policial na capital paulista divulgados pela Secretaria de Segurança Pública de São Paulo e analisados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, organização não governamental que acompanha de perto os números da violência no Brasil, seja ela policial ou não, foram 12 homicídios. Um por mês, em média. No ano anterior, em 2017, o número de homicídios foi menor: cinco. Três deles haviam sido cometidos por policiais.
A Vila Prudente não é a regra nem em São Paulo, nem no Brasil. Os números de 2018 podem ser resultado de desvio estatístico causado por recorte específico sobre base pequena. Mas não deixa de ser emblemático o fato de a polícia ter sido a responsável por todas as mortes violentas intencionais em uma área com população de 100 mil habitantes durante o percurso de um ano. “Velei 2 desses 12 em nossa igreja. Foram mortos pela Rota aqui na favela em uma noite em que entraram e atacaram a todos, bateram em crianças, mulheres”, diz Assis.
Os microdados analisados pelo Fórum, no entanto, mostram que a alta participação da polícia nos homicídios em São Paulo não é exceção da Vila Prudente. Naquele mesmo ano, as forças de segurança pública foram responsáveis por 31% dos assassinatos cometidos na capital e de mais de 45% das mortes violentas intencionais na zona leste, a região onde está a Vila Prudente e outras dezenas de bairros populares que concentram quase 2,5 milhões de pessoas.
Em todo Estado, os policiais paulistas foram os responsáveis por um quinto dos homicídios registrados em 2018. Em 2019, de acordo com os dados da secretaria, o número de mortes provocadas por policiais em serviço de São Paulo cresceu 12%, enquanto o total de homicídios caiu 6,4%. Com isso, a participação dos policiais paulistas no total de mortes registradas no ano passado cresceu 1 ponto percentual em relação a 2018, chegando a 21%.
São Paulo vive um fenômeno que tem se repetido em todo o Brasil em maior ou menor grau, mas com estabilidade. Ao mesmo tempo em que os homicídios vem caindo de forma contínua e consistente no país nos últimos anos, o número de civis mortos pelas polícias tem crescido de maneira acelerada. Entre 2015 e 2019 o número de homicídios cometidos por policiais cresceu quase 80%. Em 2015 foram 3,3 mil pessoas mortas pela polícia e em 2019 esse número chegou a 5,8 mil pessoas. Nesse mesmo período, o total de mortes violentas intencionais teve uma redução de mais de 10%.
Os números de mortes causadas por policiais no ano passado ainda não estão fechados, mas os dados preliminares mostram que a tendência é de que tenham se mantido estáveis ou crescido ainda mais. Enquanto isso, dados coletados em todo o país mostram que o número de homicídios totais teve uma redução de mais de 20% em relação a 2019 e atingiu seu menor número na série histórica. Ou seja, proporcionalmente, as policias brasileiras estão matando mais do que nunca. E quase sempre as mesmas pessoas: jovens negros de periferias.
A alta letalidade policial não deu trégua nem mesmo em meio à pandemia da covid-19. Levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública mostrou que as polícias no Rio mataram 43% mais pessoas em abril, no auge da quarentena, do que no mesmo mês do ano anterior. De acordo com os dados, foram quatro mortes cometidas pela polícia a cada quatro horas.
Foi o que ocorreu com João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, assassinado durante uma operação policial em São Gonçalo, na região metropolitana do Rio no mês passado. Sua morte se somou a outras dezenas de vítimas de operações policiais que ocorreram em comunidades pobres em meio à quarentena, quando houve redução sensível dos níveis de criminalidade no Estado e no país. Ao todo, só em abril, 177 pessoas perderam a vida no Rio em decorrência de ações policiais.
A psicóloga e pesquisadora do Conselho Latino Americano de Ciências Sociais Marisa Feffermann chama o que ocorre no Brasil de “juvenicídio”. Autora do livro “Vidas Arriscadas: o Cotidiano dos Jovens Trabalhadores do Tráfico”, ela vê na alta letalidade policial brasileira consequência de política de Estado destinada a controlar as áreas mais pobres e desiguais que não conseguem se inserir no mercado.
“Vivemos em um Estado penal, punitivista, em que, por meio da polícia, o Estado controla os excessos eliminando pessoas que não conseguiram ou não puderam entrar em um mercado cada vez menor.” Marisa estuda a violência urbana com colegas de diferentes países da América Latina. Para ela, o problema é mais estrutural do que ideológico. “Não se trata de uma política de direita ou de esquerda. No Brasil o encarceramento explodiu com o PT”, diz. “O que estamos vendo é uma das faces da crise que o capitalismo vive neste momento de extrema desigualdade no mundo. Ao não conseguir integrar todos, é preciso eliminar alguns.”
Desde que assumiu o Palácio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) tem lutado para alterar a legislação e tornar os policiais praticamente inimputáveis quando matam em serviço. Em diferentes Estados brasileiros, governadores adotaram políticas de segurança que privilegiam o confronto, como no Rio, em que as forças de segurança foram responsáveis por 30% das mortes registradas em todo o Estado em 2019.
Mas isso, dizem especialistas em segurança, não serve para explicar por que as polícias brasileiras são uma das mais violentas do mundo. “Usar Bolsonaro e a ascensão de políticos de direita para entender o que está acontecendo no Brasil é recorrer a uma explicação extremamente simplista para um problema muito complexo”, diz a diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Samira Bueno.
Como outros especialistas que vêm se dedicado a estudar violência urbana no Brasil, ela tem dificuldades em associar a ascensão de uma classe política que apoia a violência policial com o aumento das mortes provocadas pelos agentes de segurança pública. “Bolsonaro, [Wilson] Witzel e políticos que chegaram ao poder agora com discursos linha-dura são mais sintomas do que causas de um problema que cresce muito antes da chegada deles ao poder”, diz Samira, lembrando que a explosão nos números de letalidade policial ocorreu em momentos em que políticos da direita radical ainda ocupavam espaços periféricos do poder.
Ilona Szabó, diretora-executiva do Instituto Igarapé, centro de pesquisas que tem entre seus focos de estudo a segurança, estuda a correlação entre violência e democracia. Para ela, regiões onde a criminalidade é mais alta tendem a ter apreço cada vez menor pelos valores democráticos básicos. “A aceitação do uso excessivo da força mostra uma clara corrosão do Estado democrático de direito - pesquisas de opinião têm demonstrado isso com cada vez mais frequência”, diz. “Estamos caminhando em direção a uma democracia iliberal, como temos visto na Turquia, nas Filipinas e na Rússia. No Brasil, a violência tem papel fundamental nessa deteriorização dos valores democráticos.”
Para Bruno Paes Manso, jornalista que cobriu por mais de uma década a violência urbana em São Paulo e hoje é pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, há outro componente: a explosão de violência policial registrada em números nos últimos cinco anos pode não refletir o que ocorria no passado. Assim como outros pesquisadores, ele concorda que não há base estatística capaz de traçar cenário claro do que ocorria há algumas décadas.
“Ao longo de muitos anos não se sabia o que acontecia fora do Rio e de São Paulo. Não sabemos exatamente como as polícias operavam em outros Estados ou mesmo aqui; em um passado bastante recente sempre houve subnotificação, sempre houve muita morte realizada de forma ilegal, com os grupos de extermínio”, diz.
Apesar da escassez de dados, Manso afirma que a violência policial tem sido a tônica das políticas de segurança pública para as áreas periféricas e pobres do país ao longo de todos os últimos governos, independentemente do matiz ideológica. “O que estamos vendo é o resultado de política de segurança pública de mais de 30 anos baseada na ocupação territorial e no confronto”, diz. “Há três décadas estamos buscando combater a criminalidade nos utilizando das táticas de rondas ostensivas, da busca pelo flagrante, do aumento do encarceramento, e o resultado que temos é constante sensação de enxugamento de gelo.”
Um policial que prefere não ser identificado diz que crê em justiça divina. Desde que entrou para a Polícia Militar do Pará, em 2008, passou a ter dúvidas sobre a efetividade da Justiça estatal. Como milhares de policiais brasileiros, logo passou a ter essa sensação descrita por Manso de que seu trabalho era minado por um sistema judicial condescendente demais.
“Esse é um sentimento que você tem logo que entra na corporação. Os seus colegas rapidamente relatam para você que o que você está fazendo quando sai para a rua e arrisca sua vida não vai ter resultado”, conta ele. “Rapidamente aprendemos que prender um vagabundo não significa tirá-lo da rua. Logo ele estará de volta, e isso causa uma revolta imensa.”
O policial diz que matou pela primeira vez poucos meses após sair da academia. Um colega fora assassinado quando estava de folga, numa tentativa de assalto. Os companheiros de seu batalhão o convidaram para vingar o amigo de farda. Numa noite chuvosa do início de 2009, ele e outros sete policiais percorreram o bairro de onde acreditavam vir o algoz de seu colega.
“Eles já sabiam quem era vagabundo, não matamos inocentes. Foi a primeira vez que executei alguém”, diz. Logo as execuções se tornaram rotina, e em pouco tempo o policial conta que estava sendo contratado para eliminar criminosos em troca de dinheiro oferecido por comerciantes da região. “Eu me sentia, digo, ainda me sinto, um herói, somos nós que fazemos Justiça, nós que oferecemos segurança de verdade para a sociedade”, afirma ele, que diz contar mais de 80 execuções ao longo da última década.
O rapaz responde a três processos por homicídio e já esteve preso, mas foi reincorporado à PM por meio de uma decisão judicial. Segue atuando nas ruas de Belém e diz ser um policial respeitado por seus colegas. Mas sente-se injustiçado por parte do Estado, que o acusa de assassinato.
“Nós damos a vida para defender a sociedade e somos vistos como criminosos, algo está errado aí”, diz ele, que enfrenta problemas psicológicos. “Fico sem dormir, sei que fiz coisas erradas, tenho medo de como Deus vai me julgar”, conta ele, quase às lágrimas, com duas de suas pistolas sobre o colo, enquanto conversa com a reportagem em um carro estacionado em uma rua de Belém.
Esse policial faz parte do que o fundador e ex-comandante do Grupo de Ações Táticas Especiais da Polícia Militar do Estado de São Paulo (Gate), Diógenes Lucca, chama de policial despreparado. Com 30 anos de experiência na PM paulista, o tenente-coronel da reserva é crítico contumaz da violência policial. O grupo que criou e comandou é uma espécie de elite do Batalhão de Choque da PM paulista, divisão com acusações de abuso.
“O bom policial, e eu defendo que a maior parte dos policiais são bons, sabe que a legislação é seu maior aliado. Ele não cai na armadilha de fazer justiça com as próprias mãos”, diz. Para Lucca, há enorme pressão da sociedade e da comunidade para seguir a ideia de que “bandido bom é bandido morto”. “Internamente, em qualquer polícia brasileira, há uma subcultura de que aquele policial que mata, aquele policial que é duro, é visto com mais respeito pelos seus colegas. Se o comandante da tropa, o governador e o presidente reforçam publicamente essa ideia, abrem-se as portas do inferno.”
Lucca concorda que o problema é mais enraizado do que a ascensão ao poder de políticos de direita radical, mas sabe que esses líderes trazem efeitos. “Esse discurso é como um vírus em um corpo doente: se alastra de forma rápida na corporação”, diz. Diferentemente de críticos das políticas de segurança pública implantadas no país ao longo das últimas décadas, Lucca é contra a ideia de desmilitarizar as polícias militares.
No entanto, ele defende uma maior integração entre as polícias e uma unificação das políticas de segurança em relação às polícias militares. “Hoje os policiais são treinados para prender, matar, confrontar o bandido, não para proteger a população”, diz. “O cidadão, a sociedade, o inocente, nunca estão em primeiro plano, é só ver as operações nas favelas ou as perseguições policiais. A proteção do civil inocente precisa ser o foco das polícias, mais do que a ideia de prender ou confrontar o criminoso.”
Essa não é uma tarefa simples, na opinião do presidente da Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar de São Paulo, Wilson Morais. “O confronto está no sangue do policial, não tem como evitar, ele sempre vai existir”, diz ele, um cabo da reserva à frente de associação que representa boa parte dos 100 mil homens e mulheres que compõem a PM de São Paulo.
Ele atribui ao crescimento das mortes por policiais militares paulistas a um combate mais efetivo à criminalidade. “A polícia está indo para cima, não há como deixar os bandidos tranquilos, e os resultados estão aparecendo: São Paulo tem o menor índice de homicídios do Brasil.” A tese de que uma polícia mais letal é mais eficaz é contestada por muitos pesquisadores e mesmo entidades responsáveis por fiscalizar as polícias, como o Ministério Público. Apesar disso, tem sido usada com frequência por defensores de uma polícia mais agressiva, como o governador do Rio, Wilson Witzel (PSC).
Morais, no entanto, concorda que a ação ostensiva das polícias em áreas periféricas não é a solução ideal para o problema da segurança pública. “É claro que não se resolve assim. A questão principal é social - é só ver que quando aumenta o desemprego, aumenta a criminalidade”, diz. “Em muitas dessas regiões mais pobres, a polícia é o único braço do Estado, e quando chega lá é recebida à bala. O confronto se torna inevitável, e vence quem está mais preparado.”
Ele reconhece que algumas vezes há excessos por parte dos policiais, mas afirma que eles, também, têm sido vítimas de uma política de segurança pública que pouco se preocupa com os profissionais de farda. “Veja, mais de 85% dos policiais paulistas fazem bico, são até incentivados pelo Estado. Saem de uma rotina estressante e não podem descansar como deveriam, precisam ir para a rua de forma muito mais vulnerável para conseguir levar comida para casa”, diz. “Ele volta para seu trabalho cansado, esgotado, e para ele todos são bandidos até que se prove o contrário, não tem como dar certo.”
O senador Major Olímpio (PSL-SP) fez sua carreira política defendendo as forças policiais, em especial a PM paulista, de onde saiu para a vida pública. Ele concorda que a letalidade policial é fruto de uma sociedade desigual e violenta. “Veja, isso não vem num disco voador, não aparece do nada. A polícia é reflexo da sociedade, e nessa sociedade só quem combate a criminalidade é o policial. O sistema de persecução criminal não funciona, as leis são frouxas, as cadeias não ressocializam ninguém e a bomba sempre explode na mão da polícia”, diz. “Os policiais são mal remunerados - os que não estão fazendo bico, estão buscando. É uma categoria doente, os policiais são como os homens-bomba do Talibã, prontos para explodir.”
Um deles explodiu o filho de Solange Oliveira Antônio no início de uma tarde de março de 2015. Vitor tinha 20 anos e estava em liberdade condicional. Saiu de casa naquela terça-feira decidido a roubar. Foi até Perdizes, em São Paulo, e realizou o que é conhecido como “saidinha de banco”. Na avenida Professor Alfonso Bovero, a poucos metros do banco, foi morto por um policial que fazia bico como segurança para os comerciantes da região.
“Me disseram que ele foi morto em confronto, mas quando vi o corpo não acreditei. Tinha tiro na mão, na boca, alguma coisa estava errada” conta Solange. Com a ajuda de advogados, conseguiu acesso a câmeras de vigilância da região. “Ele estava dominado. O policial veio, chegou perto e executou. Ninguém tem direito de tirar a vida de ninguém, não há pena de morte no Brasil. Meu filho tinha que pagar pelo que ele fez, mas não com a morte.”
Solange processou o autor do disparo. Mas, mesmo com as imagens das câmeras de segurança, não conseguiu que o responsável pela morte de seu filho fosse condenado. A Justiça considerou que o policial agiu em legítima defesa. Desde então, Solange se tornou militante contra a letalidade policial. Faz parte do grupo Mães da Leste em Luto, organização inspirada nas Mães de Maio e que tenta tanto denunciar os abusos policiais quanto estabelecer um canal de diálogo com as forças de segurança. “A polícia aqui na ‘quebrada’ tem o poder para decidir quem vive e quem morre, mas eles não podem ter esse poder, ninguém pode ter esse poder.”
Solange agora quer encontrar uma maneira de dialogar diretamente com o comandante do 19º Batalhão da Polícia Militar, responsável pelo policiamento na região de Sapopemba, na zona leste de São Paulo. “Eles precisam melhorar a abordagem, não podem tratar nossas crianças, nossos filhos, como se eles fossem bandidos. Isso precisa parar”, diz. Ela está preocupada com seu filho mais novo, de 17 anos. Desde a morte do irmão, ele vem desenvolvendo o que ela chama de “revolta” e “ódio” contra a polícia. O rapaz, diz ela, tem sido abordado com cada vez mais agressividade à medida que vai ficando mais velho. “Tenho medo da reação dele, tenho medo de perder mais um filho.”
Padre Assis, da vizinha Vila Prudente, está certo de que vai morrer assassinado. Desde que decidiu se transformar em um ativista contra a violência policial, passou a ter essa certeza. Após outras tantas abordagens violentas da polícia ao longo dos últimos anos, chegou à conclusão de que não poderia se comportar como um mártir.
“Vi que a única maneira de enfrentar a Justiça era por dentro do sistema, por dentro do Estado”, diz. Há dois anos fez vestibular para direito e há um ano passou a estagiar na Defensoria Pública da União. Seu sonho é montar escritórios de advocacia nas favelas em que atua como pároco e, depois, se transformar em um defensor público - isso tudo sem abandonar a batina.
“Mas as coisas estão piorando, não sei se conseguirei. Todo dia sinto que eu serei também uma vítima, que eles vão me matar.” Padre Assis agora tem um diário. Todos os dias escreve. Quer que sua mãe saiba como foi sua vida. “Eu sinto que vou morrer antes dela, e acho que não posso fazer nada sobre isso”, diz ele, após recitar versos de uma música do grupo paulistano Racionais MC’s, de quem é fã.
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